quinta-feira, 29 de julho de 2010

OS CONTOS QUE VOVÓ CONTAVA

Da minha infância, o que eu guardo com mais carinho são as histórias que minha avó contava. Na meninice em Rodrigo Silva, terra natal de minha família, ou nos dez anos em que morou conosco em Cachoeira, vovó “Tote” tinha sempre um “causo” pra contar. Efigênia Pereira Fernandes era filha do conhecido José Pereira, português de nascimento que presidiu a Banda Santa Cecília por vários anos, e da Dona “Tiló”, mineira da gema, de quem com certeza deve ter herdado muitas das histórias que sabia narrar como ninguém.

Nas terríveis noites de tempestade em Rodrigo Silva ou em Cachoeira, quando a luz acabava, a tv ou o rádio cediam sempre lugar para seus contos. À luz trêmula das velas, os netos se reuniam em volta dela. As assombrações de suas histórias tomavam formas fantásticas em nossas cabeças de criança. As sombras incertas nas paredes viravam lobisomens, mulas-sem-cabeça, seres fantasmagóricos animados pela penumbra. E assim crescemos animados por este último suspiro da tradição dos contos da vovó. Hoje os entretenimentos virtuais privam os pequenos do contato único com este mundo mágico que minha avó pintava-nos com maestria.

Do seu marido, meu avô, Alberto Fernandes - dos Fernandes de Rodrigo Silva, como gostavam de salientar, talvez diferenciando-os dos de Cachoeira - lembro que era um homem muito alto, um pouco desajeitado, e misterioso, sempre misterioso. Vivia no seu quarto, em meio às suas tranqueiras (que não eram poucas), nunca saia de casa. Lembro-me sempre dele sentado cabisbaixo em uma grande pedra de amolar que ficava no terreiro. Quando chegávamos na sua casa, eu corria ao seu quarto para tomar-lhe bença: “Deus abençoa”, era a resposta dada com um leve aperto de mão. Na hora do almoço, lá vinha ele, se abaixando para não bater a cabeça na porta. Comia sempre numa velha cuia, lembrança dos tempos em que era um conhecido tropeiro a serviço de seus próprios negócios e, antes, a serviço dos de seu pai, Alfredo Fernandes, senhor das terras da famosa Fazenda do Fundão e que foi um dos pioneiros de Rodrigo Silva - que na época nem se chamava Rodrigo Silva, mas sim José Correia (Rodrigo Silva era o nome de um dos ministros de D.Pedro II que acompanhava o Imperador quando este inaugurou a Estação Ferroviária de José Correia em 1 de janeiro de 1888). Meu avô faleceu em 1986 sem que soubéssemos ao certo a sua idade verdadeira. Seu registro foi feito em 1909, mas era comum as crianças das fazendas crescerem sem pisarem num cartório. O registro civil ainda era visto com olhos desconfiados: “coisa da tal da república”... Muitas das histórias de minha avó tinham meu avô como protagonista: sua fama de curandeiro e benzedor o fizeram objeto de muitas lendas e causos até hoje correntes em Rodrigo Silva.

E assim eu fui crescendo. O olhar atencioso de vovó nunca se afastava de nós. Um dia a saudade foi maior e ela quis voltar para Rodrigo Silva, sua terra querida. Os netos já estavam crescidos. Sentiu que sua missão havia terminado. E como a brisa leve que passa pelos campos assim também minha avó passou pela vida: calma, leve, pequena. Até o fim da vida manteve a brandura do seu sorriso alegre e sem dentes, que a tantos cativou. No rosto já lhe vinha a marca dos anos, mas sua memória invejável a remetia em corrida pelos campos de Rodrigo Silva, por entre as flores que só lá nascem, nos tempos em que ouvia também de sua avó e de sua mãe as histórias que embalaram a minha infância.

No dia 6 de novembro de 1998, 6 dias antes de completar 80 anos, uma multidão acompanhou D. “Tote” à sua última morada, o pequeno cemitério localizado no alto da serra, de onde a vista domina a pequena Rodrigo Silva, com suas casinhas, a igreja de S. Antônio, a Estação e a linha de ferro, lá embaixo. Ali, no silêncio do Campo Santo, repousa no mesmo túmulo de seu marido.

Alex Bohrer
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O MONSTRO DO PÉ-DE-BEIJO

Era um homem baixinho, narigudo, risonho. Seu nome era Antônio, mas o chamavam só de Nico. Trabalhava na Central do Brasil, fiscalizando a estrada de ferro nas proximidades de Rodrigo Silva. Ele ia todos os dias verificar a “linha” desde o 19 até o 22 (a quilometragem dada pelos primeiros ferroviários foi adotada pelo povo de Rodrigo Silva que batizou com números o nome de vários lugares. Assim temos a quarta, o 19, o 22, etc).

Ele era, além disso, um homem teimoso. Uma temusura só. De vez em quando cismava de ir verificar os trilhos e os dormentes lá pelos lados do 22, altas horas da noite. Ia sob os protestos da sua mãe, dona Tiló:

__ Não fica andando de noite menino! Essa linha tá cheia de assombração!

Um encolher de ombros era a resposta. Ele ia sim! E de noite! Era um homem de responsabilidades. O trem das dez e meia tinha de passar sem risco. Qualquer imprevisto ia ser culpa dele.

Então, num desses dias de lua cheia, lá foi Nico, cantarolando e assobiando, pro 22. Deixou Rodrigo Silva pra traz e entrou na “linha”. Foi brincando de contar os dormentes, para não pensar nas palavras de sua mãe. Passou assim pelo Vasconcelos, com suas casinhas tristes. Viu de lá a grande cruz do Morro da Guerra, banhada pela luz da lua cheia. “Muita gente morreu ali, na guerra” pensou. E mais que depressa fez um Em Nome do Pai e apertou o passo. Era uma noite fria, daquelas que a ventania fica assobiando nos morros. Um assobio assustador. Era quase um uivo. Mais um Em Nome do Pai...

Ali perto tinha um grande pé-de-beijo. Diziam os antigos que ele era amaldiçoado. Mas ninguém sabia explicar por quê. Na verdade era uma bela árvore, mas naquele dia alguma coisa tava errado com ela. Alguma coisa tava balançando seus galhos e tava fazendo um grunhido muito esquisito. “Deve ser algum desocupado me fazendo medo, vou ver o que é”. Aproximou-se. Viu uma coisa enorme deitada. Pensou que fosse uma vaca doente. Encostou a mão nela, só para ajudar. O que era levantou a cabeça e...espanto! Subiu-lhe um calafrio no pescoço. Levou a mão na boca e se afastou de costas até tropeçar no trilho. Era um monstro, um monstro horrível. Era um lobisomem!

Os lobisomens de Rodrigo Silva eram diferentes dos outros. Não pareciam lobo. Pareciam porco! E este era grande, muito grande. Esbugalhava uns olhos redondos, cor de brasa. Soltava fumaça nas narinas. Nico olhou para suas patas e confirmou. Não era porco mesmo. “Era um lobisomo do outro mundo”. As patas destes seres têm um finco em baixo do casco. Por isso suas pegadas tem um furo no meio. Tentou correr, mas o monstro prendeu sua camisa com os dentes. E começou-lhe a pisar, levantando poeira e soltando uns berros horríveis. Nico tentava se defender, mas era impossível. Tampou os olhos com as mãos e rezou. Aí então houve silêncio. Levantou-se aos poucos. Não tinha mais nada. O pé-de-beijo estava calmo. Só uma brisa farfalhava suas flores. Nico saiu correndo. Pernas bambas. Ofegante. Chegou em casa com as roupas aos trapos.

No outro dia tava todo mundo falando do tal do monstro do pé-de-beijo. Os mais velhos não tinham dúvida. O monstro era um rapaz que há muitos anos morrera apaixonado por uma bela moça que pretendia desposar. O pai dela não permitiu o casório. E desde então ficava ali, por algum encanto do outro mundo, uivando com a lua cheia. Chorava sua amada na forma de um horrível monstro. Sempre no pé-de-beijo. As flores preferidas de sua amada.

Alex Bohrer
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RODRIGO SILVA

No dia 1° de janeiro de 1888 o céu azul iluminou a singela estaçãozinha ferroviária do lugar. Todas as construções do complexo ferroviário cheiravam tinta fresca, iriam ser inauguradas naquele dia por um visitante ilustre. A grande locomotiva cuspiu fumaça e fogo no alto da serra. O vagão luxuoso aportou no patamar da estação. O velhinho de cartola e barba branca, que desceu logo em seguida, despertou vivas na multidão de ferroviários, que por anos a fio trabalharam na execução daquela obra gigantesca. O velhinho de barbas brancas era o Imperador D.Pedro II, sua missão naquele dia era inaugurar o complexo ferroviário de Rodrigo Silva, construído sobre as velhas fazendas da antiga José Correia. Pouca gente conhece esta cena ou já ouviu falar nisso, mas assim nasceu oficialmente Rodrigo Silva.

Os primeiros registros relativos ao local denominado José Correia sempre estão ligados à Santa Quitéria do Alto da Boa Vista, antiga paragem colonial, hoje abandonada, nas proximidades de Rodrigo Silva. A mineração de topázio sempre esteve presente na história do lugar. Viajantes estrangeiros já registravam a exploração de topázio no início do século XIX. Algumas destas lavras de topázio eram gigantescas empregando centenas de escravos. Até a chegada dos ferroviários, José Correia compunha-se de fazendas espalhadas por léguas de distância. A mais famosa delas é a Fazenda do Fundão, ainda existente. Nesta fazenda nasceu, em 1870, Alfredo Fernandes dos Prazeres personagem importante na construção da nova cidadezinha ferroviária. Quando no começo da década de 1880 fez-se o projeto da estrada de ferro ligando o Rio de Janeiro à Ouro Preto, projetou-se também uma nova paragem a se estabelecer em José Correia, que teria seu nome mudado para Rodrigo Silva em homenagem a um ministro imperial. O complexo ferroviário inaugurado em 1888 em volta da estação estendeu-se posteriormente de um lado a outro, paralelo à estrada de ferro. Alfredo Fernandes estabeleceu em Rodrigo Silva casas de comércio e doou o madeiramento para a construção da Igreja de Santo Antônio, padroeiro do lugar. As mercadorias chegadas na estação eram então distribuídas pela região, por vários tropeiros a serviço do jovem fazendeiro.

No começo do século XX fundou-se a Sociedade Musical Santa Cecília de Rodrigo Silva, símbolo primeiro da cultura desenvolvida pelos ferroviários. No arquivo desta banda encontram-se composições feitas pelos ferroviários, demonstração de grande apuro musical. Hoje nos trilhos de Rodrigo Silva não passam mais trens, mas a cultura do topázio continua, com a exploração do famoso topázio imperial, único do mundo. 

Alex Bohrer
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