Da minha infância, o que eu guardo com mais carinho são as histórias que minha avó contava. Na meninice em Rodrigo Silva, terra natal de minha família, ou nos dez anos em que morou conosco em Cachoeira, vovó “Tote” tinha sempre um “causo” pra contar. Efigênia Pereira Fernandes era filha do conhecido José Pereira, português de nascimento que presidiu a Banda Santa Cecília por vários anos, e da Dona “Tiló”, mineira da gema, de quem com certeza deve ter herdado muitas das histórias que sabia narrar como ninguém.
Nas terríveis noites de tempestade em Rodrigo Silva ou em Cachoeira, quando a luz acabava, a tv ou o rádio cediam sempre lugar para seus contos. À luz trêmula das velas, os netos se reuniam em volta dela. As assombrações de suas histórias tomavam formas fantásticas em nossas cabeças de criança. As sombras incertas nas paredes viravam lobisomens, mulas-sem-cabeça, seres fantasmagóricos animados pela penumbra. E assim crescemos animados por este último suspiro da tradição dos contos da vovó. Hoje os entretenimentos virtuais privam os pequenos do contato único com este mundo mágico que minha avó pintava-nos com maestria.
Do seu marido, meu avô, Alberto Fernandes - dos Fernandes de Rodrigo Silva, como gostavam de salientar, talvez diferenciando-os dos de Cachoeira - lembro que era um homem muito alto, um pouco desajeitado, e misterioso, sempre misterioso. Vivia no seu quarto, em meio às suas tranqueiras (que não eram poucas), nunca saia de casa. Lembro-me sempre dele sentado cabisbaixo em uma grande pedra de amolar que ficava no terreiro. Quando chegávamos na sua casa, eu corria ao seu quarto para tomar-lhe bença: “Deus abençoa”, era a resposta dada com um leve aperto de mão. Na hora do almoço, lá vinha ele, se abaixando para não bater a cabeça na porta. Comia sempre numa velha cuia, lembrança dos tempos em que era um conhecido tropeiro a serviço de seus próprios negócios e, antes, a serviço dos de seu pai, Alfredo Fernandes, senhor das terras da famosa Fazenda do Fundão e que foi um dos pioneiros de Rodrigo Silva - que na época nem se chamava Rodrigo Silva, mas sim José Correia (Rodrigo Silva era o nome de um dos ministros de D.Pedro II que acompanhava o Imperador quando este inaugurou a Estação Ferroviária de José Correia em 1 de janeiro de 1888). Meu avô faleceu em 1986 sem que soubéssemos ao certo a sua idade verdadeira. Seu registro foi feito em 1909, mas era comum as crianças das fazendas crescerem sem pisarem num cartório. O registro civil ainda era visto com olhos desconfiados: “coisa da tal da república”... Muitas das histórias de minha avó tinham meu avô como protagonista: sua fama de curandeiro e benzedor o fizeram objeto de muitas lendas e causos até hoje correntes em Rodrigo Silva.
E assim eu fui crescendo. O olhar atencioso de vovó nunca se afastava de nós. Um dia a saudade foi maior e ela quis voltar para Rodrigo Silva, sua terra querida. Os netos já estavam crescidos. Sentiu que sua missão havia terminado. E como a brisa leve que passa pelos campos assim também minha avó passou pela vida: calma, leve, pequena. Até o fim da vida manteve a brandura do seu sorriso alegre e sem dentes, que a tantos cativou. No rosto já lhe vinha a marca dos anos, mas sua memória invejável a remetia em corrida pelos campos de Rodrigo Silva, por entre as flores que só lá nascem, nos tempos em que ouvia também de sua avó e de sua mãe as histórias que embalaram a minha infância.
No dia 6 de novembro de 1998, 6 dias antes de completar 80 anos, uma multidão acompanhou D. “Tote” à sua última morada, o pequeno cemitério localizado no alto da serra, de onde a vista domina a pequena Rodrigo Silva, com suas casinhas, a igreja de S. Antônio, a Estação e a linha de ferro, lá embaixo. Ali, no silêncio do Campo Santo, repousa no mesmo túmulo de seu marido.
Alex Bohrer
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