Por Partes

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Por esses Campos da Cachoeira...

por Alex Bohrer


TRÊS SÉCULOS ANTES


Corria o ano de Nosso Senhor de 1675. As levas de aventureiros chegavam aos montões, vindas pelo Velhas, desde Sabará até os campos abertos. Milhares de homens brancos, negros e índios salpicavam o cerrado. Era uma massa colorida, de semblantes e linguajar variados, todos unidos no sonho do eldorado.
A Bandeira contornou o Rio Maracujá, com suas belas quedas que despencavam em direção ao Tijuco, e seguiu adiante. No alforje do líder uma bússola de marfim, pólvora e mapas amarelados conviviam com o cheiro forte do coro molhado.  A noite passou sem sobressaltos. Pela manhã, fincou-se cruz à margem do ribeiro. Missa improvisada pelo cansado frade da expedição. As brumas matutinas se dissiparam. À frente de todos estava a aprazível colina.
_Não, cá no baixo não! Que levantemos nossa ermida no alto, perto de Deus!
Foram cortando a mata - que ali, e na montanha vizinha, era espessa - e subiram. No cume, uma acanhada planície os esperava. Era o lugar ideal para a capelinha. Erigiram-na de madeira, barro e suor. No teto, sapê. No altar singelo, entronizaram a relíquia do grupo: a pequenina imagem de Nossa Senhora de Nazaré, vinda desde São Paulo, em sua casinha dourada. Novamente, missa. Mas, dessa vez, missa descansada. Haviam encontrado lugar e paragem.
Ouro? No Sabarabuçu, agora distante deles dezenas de léguas, o chão cuspia o metal amarelado aos borbotões. Mas, aqui, na terra vermelha, não sabiam. Iam é plantar - e roça de milho devastou o pé da serra. Ali haveriam de estar, pelo menos por enquanto. Os paulistas eram seres irrequietos, transeuntes das matas. Viviam de déu em déu.
Passados alguns anos, ouro! Ouro no Santo Antônio da Casa Branca, no Arraial do Apóstolo São Bartolomeu, nas fraldas da Serra do Ouro Preto, no Ribeirão do Carmo, nas lavras de Antônio Pereira. A região foi novamente invadida por gente de toda parte: Portugal mandou seus filhos do norte, do Douro e Minho; da África vieram os escravos congos, benguelas e os minas; hábeis artífices franceses e livreiros de Flandres foram arrastados neste turbilhão; Chineses do Macau, dos confins de tudo, vinham de mil léguas; Espanhóis clandestinos traziam prata das minas americanas de Potosí e do Peru.
O pequeno arraial, com sua capelinha, conviveria, a partir de agora, com esses forasteiros, apelidados de Emboabas, portugueses em sua maioria. Brigas com eles haveriam de vir. Escaramuças, a Guerra e, por fim, a grande expulsão dos primeiros paulistas. Foram portugueses que, em 1710, há 300 anos, bendizeram o começo da Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré dos Campos da Cachoeira. Em torno da primitiva ermida começaram a erguer sua majestosa Igreja Matriz. Dos antigos exploradores, chegados no último quartel dos anos 1600, respeitaram a escolha da padroeira - Senhora de Nazaré - e o velho topônimo, dado pelas cascatas ruidosas da região e pelo cerrado: Cachoeira do Campo.



O NASCIMENTO DE UM ARRAIAL


O Arraial de Nossa Senhora de Nazaré de Cachoeira do Campo nasceu e cresceu de forma bem diferente de sua irmã maior, Vila Rica. Todo o traçado do arruamento, como era típico do urbanismo português, convergia para a majestosa Igreja Matriz, que então se levantava. As vias precisas de Cachoeira, em geral amplas e retas, nos faz pensar num arraial que não se fez ao “Deus dará”, mas que foi pensado, desenhado e discutido.
Bem em frente à Matriz, um amplo largo se afunilava na rua chamada “de Cima”. À direita da Matriz, uma alameda espaçosa e retilínea levava à parte baixa. Esta via, a Rua Directa de Cachoeira, ou Direita, era (e é) chamada simplesmente de Ladeira. Foi este, provavelmente, o primeiro caminho calçado do lugar. Segundo relatos antigos, o pavimento se fez para evitar erosão e as enchentes do rio, que eram freqüentes e assolavam o sopé da colina. A Ladeira desembocava na encruzilhada do Bom Despacho - onde pequena capela já existia desde o século XVIII - e dava origem a outra rua, chamada “de Baixo”, também das mais tradicionais do arraial.
Existiam duas vias que ligavam a parte de baixo e a de cima: uma é a Ladeira, já citada, e a outra, a Rua das Mercês, menos larga que sua congênere, mas retilínea da mesma forma (o que destoa do padrão regional do período, marcado por logradouros estreitos e sinuosos). Além desses acessos, becos também faziam elos entre os dois centros. Esses becos, de aspecto romântico e sombrio, eram nada mais que os fundos dos quintais da parte alta e da parte baixa de Cachoeira, delimitados por muros de pedra seca. Um deles nascia no Bom Despacho, o outro originava-se no Largo de Santo Antônio.
Seguindo para trás da Matriz, os caminhos davam em uma trifurcação: a entrada central ia ao Monte Calvário, que em 1761 receberia a construção da primeira igreja dedicada a Nossa Senhora das Dores no Brasil; a da esquerda levava às terras da Coroa Portuguesa (onde o governo construiria o famoso Palácio de Campo dos Governadores e uma bela ponte de pedra); à direita estava o Beco do Lobo, picada que conduzia ao lugarejo do Tijuco, mais tarde chamado Amarante.
No outro extremo do Arraial nascia a Ladeira do Tombadouro. Caminho famoso e antigo, era por lá que se atingia Vila Rica, Casa Branca, São Bartolomeu, Sabará, Caeté, Diamantina etc, e onde geralmente os viajantes achavam pouso.
Mais distante do centro ficava a Rua do Campo (atual São Francisco), que levava à Cruz dos Monges (atual Vila Alegre). Paralela ao Campo, mas meio quilômetro distante, estava a Rua do Rego (atual São José), que rumava aos Campos do Holana e ao Leite. Outros recantos do velho arraial eram a Fonte de Fora, o Pastinho, o Açude (onde os governadores captavam a água do Palácio), o Morro do Pe. João (atual Beleza), o Jardim, o Beco dos Aflitos, a Rua Nova etc - todas paragens históricas do histórico arraial.
Esperamos, em ocasião oportuna, discorrer sobre cada um destes lugares separadamente.



OS FUNDADORES


No último dia 25 de março, a AMIC (Associação Cultural Amigos de Cachoeira do Campo) completou 10 anos de existência. Muitas informações apontadas nesta coluna são fruto do trabalho paciente dessa entidade que se caracteriza, especialmente, pela defesa do patrimônio histórico cachoeirense, bem como pelo garimpo de documentação que lance luz sobre nosso passado, praticamente esquecido antes das ações dessa ONG. Nestes dez anos, uma pergunta nos foi freqüentemente direcionada: quem fundou Cachoeira do Campo? Isso, por si só, daria tema de debate a mil colunas. Vamos, resumidamente, falar o que descobrimos até então. Sabemos que algumas bandeiras freqüentaram esta região, singrando a Bacia do Rio das Velhas, via natural de acesso às lavras de ouro do Sabarabuçu. Segundo alguns historiadores, a expedição de Fernão Dias Paes - o famoso Caçador de Esmeraldas - teria percorrido, na década de 1670, o vasto território então conhecido por ‘Campos da Cachoeira’. Todavia, não se deve dizer que o povoado propriamente dito foi fundado por esta empreitada. Documentos sobre esse período são raríssimos. Há, contudo, uma antiga lenda que aponta como fundador do arraial um paulista bandeirante chamado Manoel de Mello. De fato, há algumas referências a um Arraial da Cachoeira do Manoel de Mello, o que levou alguns a crerem na veracidade da lenda. Variações romanceadas dessa estória dão conta que os restos mortais deste Mello jazem solenemente sob as largas bases de pedra do Cruzeiro da Praça Filipe dos Santos.
Outros nomes gravados nos registros primazes são o do Pe.Leão Gonçalo (primeiro sacerdote a ser enterrado dentro da Matriz, em 1709), o do Pe.Amador Rodrigues (paulista, pároco pela época da Guerra dos Emboabas, em 1708), e o do Pe.Estevão Colaço (que assina alguns papéis por volta de 1714). Ao lado destes personagens obscurecidos pelo tempo, temos, contudo, três nomes relativamente bem documentados, todos ligados à infância de Cachoeira do Campo: Antônio da Silva Barros, Cel.Antônio Pimenta da Costa e o Tenente Joseph Luiz Sol.
Após pesquisa minuciosa, conseguimos precisar o lugarejo natal de Antônio da Silva Barros: esse pioneiro era de Sequeira, povoado localizado entre os Rios Homem e Cávado, no Arcebispado de Braga, norte de Portugal (aliás, grande parte dos primitivos exploradores de Minas era do norte de Portugal, da região chamada Entre Douro e Minho). Barros acumulou imensa fortuna em Cachoeira e, como morreu solteiro, deixou vultoso recurso para as obras de construção da nossa Igreja Matriz. Em 1714, ao escrever seu testamento, pediu que seu corpo fosse sepultado no templo que ele ajudou a erguer. Apesar de não ser casado, ele manteve, provavelmente, relacionamento com uma de suas escravas (aliás, ele possuía 22 escravos, a maioria dos quais deveria receber alforria após sua morte).
O Cel.Antônio Pimenta da Costa, também natural do Entre Douro e Minho, foi figura influente na Irmandade do Santíssimo de Cachoeira desde, pelo menos, 1719 até 1777, quando morreu longevo. Outro membro exponencial da citada irmandade foi o Tenente Joseph Luiz Sol, citado freqüentemente nos registros de casamento e batismo da Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré, muita vezes como padrinho de bebês ou noivos, o que mostra o prestígio que devia desfrutar. No recuado ano de 1716 fez abertura de um famoso livro da Irmandade do Santíssimo, reencontrado recentemente.
Estes são alguns nomes que se lêem nos arquivos ancestrais, nomes que no passado devem ter sido muito ouvidos (e ditos) pelas nossas venerandas ruas.



A MATRIZ DE NAZARÉ


A Matriz de Nossa Senhora de Nazaré de Cachoeira do Campo é dos monumentos mais representativos da arte luso-brasileira, sendo um exemplar magnífico do chamado Estilo Nacional Português, estilo que, diga-se de passagem, marca o início do que chamamos de Barroco Mineiro. Muita gente se indaga: qual a razão da existência de templo tão importante e antigo em Cachoeira do Campo? Tal pergunta tem várias respostas, vamos a algumas.

A primeira razão, mais que justificável, é que o Arraial de Cachoeira se localizava num dos pontos mais estratégicos da então Capitania de Minas, num lugar de entroncamentos importantes das velhas estradas. De Cachoeira ia-se a Sabará, Diamantina, São João del Rei, Rio de Janeiro, São Paulo etc, tudo através de vias abertas e mantidas pela Coroa. Bom motivo para se estabelecerem aqui alguns poderosos da época. Seduzidos por esta facilidade, os próprios governadores erigiram uma grande casa de veraneio na década de 1730, onde passavam longos períodos. Sobre esse Palácio de Campo, falaremos em ocasião oportuna.

Segunda razão, Cachoeira tinha solo fértil, o que possibilitou a constituição de algumas das principais fazendas de abastecimento das minas. Obviamente, isso atraiu agricultores e grandes comerciantes: homens que, fundadores das irmandades locais, arquitetariam, de fato, a Matriz. Terceira razão, Cachoeira tinha clima dos mais agradáveis da colônia portuguesa, fato registrado desde o século XVIII. Muitos fugiram do ambiente úmido e penumbrista de Vila Rica em busca da cura dos (não poucos) males que sofriam.

E como se deu a construção da Matriz? Sabe-se que entre as primeiras providências dos desbravadores, quando assentavam um arraial, estava a edificação de pequeno oratório, geralmente coberto de sapê. Foi assim que nasceu a primitiva ermida dedicada a Nossa Senhora de Nazaré. Alguns acham que este edifício se localizava onde hoje está a Capela do Bom Despacho (o historiador Augusto de Lima Júnior sugeriu que esta obra bandeirante é a mesma Capela do Bom Despacho - agora muito modificada). Contudo, a maioria dos historiadores crê que tal templo ancestral ficava no mesmo lugar da Matriz de hoje, sendo demolido por volta de 1705, para o início das novas obras. Inclusive, parece que partes deste misterioso monumento ainda são visíveis na igreja paroquial, como as seis pinturas que ornam a sacristia (tidas como das mais antigas do estado) e alguns patamares de porta que hoje pavimentam o adro (ao leitor curioso que lá se chegue, observe que certas pedras azuis do passeio central possuem furos quadrados e retangulares, obviamente feitos para se encaixar desaparecidos marcos de portas).

O local escolhido era privilegiado, dominando em cheio os arredores, com ampla visão. Paragem bela e bem ventilada, por lá ainda correm gostosos ventos. Deve ter acontecido considerável terraplenagem em toda extensão da praça circundante. É possível imaginar as centenas de trabalhadores (a maioria escravos) se dedicando a essa tarefa árdua e executada sem maquinário. Tudo tinha que ser bem feito e arrumado, era ali que os cachoeirenses de outrora levantariam seu monumental templo, um dos mais antigos monumentos de vulto de Minas Gerais, erguido antes das grandes obras ouro-pretanas, e ao qual se destinaria uma página especial na História da Arte Brasileira e Portuguesa.